sexta-feira, 26 de agosto de 2011

A educação para além do Capital, por István Mészáros



1- A lógica incorrigível do capital e o seu impacto sobre a educação
2- Os remédios não podem ser só formais; eles devem ser essenciais
3- "A aprendizagem é a nossa vida, desde a juventude até à velhice"
4- A educação como a "transcendência positiva da auto-alienação do trabalho"



"A aprendizagem é a nossa vida, desde a juventude até à velhice, de facto quase até à morte; ninguém vive durante dez horas sem aprender".
Paracelso

"Se viene a la tierra como cera, – y el azar nos vacía en moldes prehechos. – Las convenciones creadas deforman la existencia verdadera… Las redenciones han venido siendo formales: - es necesario que sean esenciales . La liberdad política no estará asegurada, mientras no se asegura la libertad espiritual. … La escuela y el hogar son las dos formidables cárceles del hombre".
José Martí

"A doutrina materialista relativa à mudança de circunstâncias e à educação esquece que elas são alteradas pelo homem e que o educador deve ser ele próprio educado. Portanto, esta doutrina deve dividir a sociedade em duas partes, uma das quais [os educadores] é superior à sociedade. A coincidência da mudança de circunstâncias e da actividade humana ou da auto-mudança pode ser concebida e racionalmente entendida apenas como prática revolucionária".
Marx



Escolhi estas três epígrafes a fim de antecipar alguns dos pontos principais deste discurso. A primeira, do grande pensador do século XVI, Paracelso; a segunda, de José Martí e a terceira de Marx. A primeira diz, em contraste agudo com a concepção actual tradicional e tendencialmente estreita da educação, que " A aprendizagem é a nossa vida, da juventude à velhice, de facto quase até à morte; ninguém vive durante dez horas sem aprender " [1] . Relativamente a José Martí, ele escreve, podemos estar certos, com o mesmo espírito de Paracelso quando insiste que " La educación empieza com la vida, y non acaba sino con la muerte ". Mas ele acrescenta algumas qualificações cruciais, criticando rigorosamente os remédios tentados na nossa sociedade e também conclamando à tarefa maciça pela frente. É assim que ele perspectiva o nosso problema: "Se viene a la tierra como cera, - y el azar nos vacía en moldes prehechos. – Las convenciones creadas deforman la existencia verdadera… Las redenciones han venido siendo formales; - es necesario que sean esenciales. La liberdad política no estará asegurada, mientras no se asegura la libertad espiritual. …La escuela y el hogar son las dos formidables cárceles del hombre." [2] E a terceira epígrafe, escolhida de entre as "Teses sobre Feuerbach" de Marx, põe em evidência a linha divisória que separa os socialistas utópicos, como Robert Owen, daqueles que no nosso tempo têm que ultrapassar os graves antagonismos estruturais da nossa sociedade. Porque estes antagonismos bloqueiam o caminho para a mudança absolutamente necessária sem a qual não pode haver esperança para a própria sobrevivência da humanidade, muito menos para a improvisação das suas condições de existência. Estas são as palavras de Marx: "A doutrina materialista relativa à mudança de circunstâncias e à educação esquece que elas são alteradas pelo homem e que o educador deve ser ele próprio educado. Portanto, esta doutrina deve dividir a sociedade em duas partes, uma das quais é superior à sociedade. A coincidência da mudança de circunstâncias e da actividade humana ou da auto-mudança pode ser concebida e racionalmente entendida apenas como prática revolucionária". [3] A ideia que pretendo sublinhar é a de que não apenas na última citação mas à sua maneira em todas as três, durante um intervalo temporal de quase cinco séculos, se sublinha a imperatividade de se instituir – tornando-a ao mesmo tempo irreversível – a mudança estrutural radical. Uma mudança que nos leve para além do capital no sentido genuíno e educativamente viável do termo.

1. A lógica incorrigível do capital e o seu impacto sobre a educação

Poucos negariam hoje que a educação e os processos de reprodução mais amplos estão intimamente ligados. Consequentemente, uma reformulação significativa da educação é inconcebível sem a correspondente transformação do quadro social no qual as práticas educacionais da sociedade devem realizar as suas vitais e historicamente importantes funções de mudança. Mas para além do acordo sobre este simples facto os caminhos dividem-se severamente. Pois, caso um determinado modo de reprodução da sociedade seja ele próprio tido como garantido, como o necessário quadro de intercâmbio social, nesse caso apenas são admitidos alguns ajustamentos menores em todos os domínios em nome da reforma, incluindo o da educação. As mudanças sob tais limitações conjecturais e apriorísticas são admissíveis apenas com o único e legitimo objectivo de corrigir algum detalhe defeituoso da ordem estabelecida, de forma a manter-se as determinações estruturais fundamentais da sociedade como um todo intactas, em conformidade com as exigências inalteráveis de um sistema reprodutivo na sua totalidade lógico. É-se autorizado a ajustar as formas através das quais uma multiplicidade de interesses particulares conflitantes se devem conformar com a regra geral pré-estabelecida da reprodução societária, mas nunca se pode alterar a própria regra geral.

Esta lógica exclui, com finalidade categórica, a possibilidade de legitimar o concurso entre as forças hegemónicas fundamentais rivais de uma dada ordem social como alternativas viáveis umas das outras, quer no campo da produção material quer no domínio cultural/educacional. Portanto, seria bastante absurdo esperar uma formulação de um ideal educacional, do ponto de vista da ordem feudal em vigor, que contemplasse a dominação dos servos, como classe, sobre os senhores da classe dominante bem estabelecida. Naturalmente, o mesmo vale para a alternativa hegemónica fundamental entre capital e trabalho. Não surpreendentemente, portanto, até as mais nobres utopias educacionais, formuladas no passado a partir do ponto de vista do capital, tiveram que permanecer estritamente dentro dos limites da perpetuação do domínio do capital como um modo de reprodução social metabólica. Os interesses objectivos de classe tinham de prevalecer mesmo quando os autores subjectivamente bem intencionados destas utopias e discursos críticos observavam claramente e ridicularizavam as manifestações desumanas dos interesses materiais dominantes. A suas posições críticas poderiam apenas chegar até ao ponto de utilizar as reformas educativas que propusessem para remediar os piores efeitos da ordem reprodutiva capitalista estabelecida sem, contudo, eliminar os seus fundamentos causais antagónicos profundamente enraizados.

A razão porque todos os esforços passados destinados a instituir grandes reformas na sociedade por meio de reformas educacionais esclarecidas, reconciliadas com o ponto de vista do capital, tiveram de soçobrar – e que ainda hoje permanece – é o facto de as determinações fundamentais do sistema capitalista serem irreformáveis. Como sabemos através da triste história da estratégia reformista, já com mais de 100 anos, desde Edward Bernstein [4] e seus associados – que outrora prometeram a transformação gradual da ordem capitalista numa ordem qualitativamente diferente, socialista – o capital é irreformável porque pela sua própria natureza, como totalidade reguladora sistemática, é totalmente incorrigível. Ou tem êxito em impor aos membros da sociedade, incluindo as personificações "carinhosas" do capital, os imperativos estruturais do seu sistema como um todo, ou perde a sua viabilidade como o regulador historicamente dominante do modo de reprodução social metabólico bem estabelecido e universal. Consequentemente, quanto aos seus parâmetros estruturais fundamentais o capital deve permanecer sempre incontestável, mesmo que todos os tipos de correctivos marginais sejam não só compatíveis mas também benéficos, e realmente necessários, para ele importando a sobrevivência continuada do sistema. Limitar uma mudança educacional radical às margens correctivas auto-servidoras do capital significa abandonar de uma só vez, conscientemente ou não, o objectivo de uma transformação social qualitativa. Do mesmo modo, procurar margens de reforma sistemática no próprio enquadramento do sistema capitalista é uma contradição em termos. É por isso que é necessário romper com a lógica do capital se quisermos contemplar a criação de uma alternativa educacional significativamente diferente.

Devido à limitação de tempo posso aqui referir-me apenas a duas grandes figuras da burguesia iluminista, a fim de ilustrar os limites objectivos inultrapassáveis mesmo quando casados com a melhor das intenções subjectivas. A primeira é um dos maiores economistas políticos de todos os tempos, Adam Smith, e a segunda o extraordinário reformador social e educacional utópico – que também tentou pôr em prática aquilo que pregava, até cair em bancarrota económica – Robert Owen.

Adam Smith, apesar do seu profundo compromisso com a forma de organização da economia e da reprodução social capitalista, condenou de forma clara o impacto negativo do sistema sobre a classe trabalhadora. Falando acerca do "Espírito Comercial", como a causa do problema, ele insistia em que este
"limita as visões do homem. Onde a divisão do trabalho é levada até à perfeição, todo o homem tem apenas uma operação simples para realizar; a isto se limita toda a sua atenção, e poucas ideias passam pela sua cabeça senão aquelas que com ela têm ligação imediata. Quando a mente é empregue numa variedade de objectos, ela é de certa forma ampliada e aumentada, e devido a isto geralmente reconhece-se que um artista do campo tem um alcance de pensamentos bastante superior a um citadino. O primeiro é talvez um artesão, um carpinteiro e um marceneiro, tudo em um, e a sua atenção deve ser empregue em vários objectos de diferentes tipos. O último é talvez apenas um marceneiro; esse tipo específico de trabalho emprega todos os seus pensamentos, e como ele não teve a oportunidade de comparar vários objectos, as suas visões das coisas para além do seu trabalho de forma alguma são tão extensas como as do primeiro. Este deve ser ainda mais o caso quando a atenção de uma pessoa é empregue na décima sétima parte de um alfinete ou a octogésima parte de um botão, de tão divididas que estão estas manufacturas. …Estas são as desvantagens de um espírito comercial. As mentes dos homens são contraídas e tornadas incapazes de elevação. A educação é desprezada, ou no mínimo negligenciada, e o espírito heróico praticamente extinto na totalidade. Remediar estes defeitos seria um assunto digno de séria atenção." [5]
Contudo, a "séria atenção" advogada por Adam Smith chega a ser muito pouco, senão mesmo nada. Porque este astuto observador das condições da Inglaterra sob o avanço triunfante do "Espírito Comercial", não encontra outro remédio senão uma denúncia moralizante dos efeitos degradantes das forças secretas, culpando os próprios trabalhadores em vez do sistema que lhes impõe essa situação infeliz. Com este espírito Smith escreve que "Quando o rapaz passa a adulto ele não tem ideias com as quais se possa divertir. Portanto quando ele está afastado do seu trabalho, ele tem que entregar-se à embriaguez e ao tumulto. Consequentemente concluímos que, nos locais de comércio da Inglaterra, os comerciantes estão, na maior parte do tempo, neste estado desprezível; o seu trabalho durante metade da semana é suficiente para os manter, e devido à falta de educação eles não se divertem com outras coisas senão com o tumulto e a boémia ." [6] Assim a exploração capitalista do "tempo de lazer" levada hoje à perfeição, sob o domínio de um "Espírito Comercial" mais actualizado, parecia ser a solução, sem alterar nem um pouco o núcleo alienante do sistema. A consideração de que Adam Smith gostaria de ter instituído algo que conduzisse a uma maior elevação do que a exploração cruel e insensível do "tempo de lazer" dos jovens não altera o facto de que até o discurso desta grande figura do Iluminismo Escocês é bastante incapaz de se dirigir às causas mas tem que permanecer armadilhado no círculo vicioso dos efeitos condenados. Os limites objectivos da lógica capitalista prevalecem mesmo quando falamos acerca de grandes figuras que conceptualizam o mundo a partir do pontos de vista capitalista, e mesmo quando eles tentam expressar subjectivamente, com um espírito iluminado, uma preocupação humanitária genuína.

O nosso segundo exemplo, Robert Owen, meio século após Adam Smith, não restringe as suas palavras quando denuncia a busca do lucro e o poder do dinheiro, insistindo que "o empregador vê o empregado como um mero instrumento de ganho". [7] Contudo, na sua experiência educacional prática ele espera a cura a partir do impacto da "razão" e do "esclarecimento", pregando não aos ""convertidos" mas aos "não convertíveis" que não conseguem pensar no trabalho em qualquer outro termo que não seja "mero instrumento de ganho". É assim que Owen fundamenta a sua tese:
"Devemos então continuar a reter a instrução nacional dos nossos camaradas, que, como foi mostrado, podem facilmente ser treinados para serem industriosos, inteligentes, virtuosos e membros valiosos do Estado?
        De facto, a verdade é que todas as medidas agora propostas são apenas um acordo com os erros do actual sistema; uma vez que estes erros existem agora quase universalmente, e têm que ser ultrapassados apenas através da força da razão; e como a razão, para influenciar os objectivos mais benéficos, faz os seus avanços através de pequenos degraus, e consubstancia progressivamente uma verdade de alto significado após outra, será evidente, para mentes de pensamento amplo e rigoroso, que apenas através destes e de outros acordos similares pode o sucesso ser racionalmente esperado na prática. Dado que tais acordos apresentam a verdade e o erro ao público; e sempre que eles são razoavelmente exibidos em conjunto, no final das contas a verdade tem que prevalecer. … Espera-se com segurança que este período está próximo, quando o homem, através da ignorância, não mais infligirá a miséria desnecessária sobre o homem; porque a massa da humanidade tornar-se-á iluminada, e irá claramente discernir que ao agir assim irá inevitavelmente criar miséria para ela própria" [8]
O que torna este discurso extremamente problemático, não obstante as melhores intenções do autor, é que ele tem que se conformar com os limites debilitantes do capital. É também por isto que a nobre experiência prática utópica de Owen em Lanark está condenada ao fracasso. Porque tenta conseguir o impossível: a reconciliação de uma concepção utópica liberal/reformista com as regras implacáveis da ordem estrutural incorrigível do capital.

O discurso de Owen revela a inter-relação estreita entre a utopia liberal e a defesa do procedimento "através de pequenos passos", "apenas através de acordos", e de querer ultrapassar os problemas existentes "apenas através da força da razão". Contudo, uma vez que os problemas em causa são abrangentes, correspondendo aos requisitos inalteráveis da dominação estrutural e da subordinação, a contradição entre o carácter global que aceita tudo dos fenómenos sociais criticados e a parcialidade e o gradualismo dos remédios propostos – que apenas são compatíveis com o ponto de vista do capital – têm que ser substituídos de modo fictício através da generalidade abrangente de alguns "deve ser" utópicos. Assim, vemos na caracterização de Owen de "o que tem de ser feito?" uma mudança dos originalmente bem apontados fenómenos sociais específicos – por exemplo, a condição deplorável em que "o empregador vê o empregado como um mero instrumento de ganho" – para a generalidade vaga e intemporal do "erro" e da "ignorância", para concluir de forma circular que o problema da "verdade versus o erro e a ignorância" (o qual é afirmado como uma questão de "razão e esclarecimento") pode ser solucionado "apenas através da força da razão". E, claro, a garantia que recebemos do êxito do remédio educacional "Owenita" é, mais uma vez, circular: a afirmação de que "no final das contas a verdade tem que prevalecer, porque a massa da humanidade tornar-se-á iluminada". Nas raízes da generalidade vaga da concepção medicinal de Owen vemos que o seu gradualismo utópico é, reveladoramente, motivado pelo medo, e pela angústia, da alternativa sócio-histórica hegemónica emergente do trabalho. Com este espírito, ele insiste que sob as condições em que os trabalhadores estão condenados a viver eles "adquirem uma ferocidade bruta de carácter, a qual, se não houver planeamento criterioso de medidas legislativas para prevenir o seu aumento, e melhorar as condições desta classe, mais cedo ou mais tarde mergulhará o país num formidável e talvez complexo estado de perigo. A finalidade directa destas observações é influenciar a melhoria e evitar o perigo". [9]

Quando os pensadores castigam o "erro e a ignorância", eles devem também indicar o fundamento a partir do qual se elevam os pecados intelectuais criticados, em vez de os assumir como seus, base última e irredutível na qual a questão do "porquê?" não pode e não deve ser endereçada. Do mesmo modo, também o apelo à autoridade da "razão e do esclarecimento", como a solução futura e infalível para os problemas analisados esquiva-se falaciosamente à pergunta: "porque é que a razão e o esclarecimento não funcionaram no passado?", e se assim foi, "qual é a garantia de que eles funcionarão no futuro?" Para ter a certeza, Robert Owen não é de forma alguma o único pensador que oferece o "erro e a ignorância" como o último fundamento explicativo dos fenómenos denunciados, para ser felizmente rectificado pela força toda-poderosa da "razão e do esclarecimento". Ele partilha esta característica e a associada crença positiva – longe de fundamentada seguramente – com a tradição iluminista liberal no seu conjunto. Isto torna a contradição subjacente ainda mais significativa e difícil de ultrapassar. Consequentemente, quando nos opomos à circularidade de tais diagnósticos finais e declarações de fé, que insistem em que para além do ponto explicativo assumido possivelmente ninguém pode ir, não podemos satisfazer-nos com a ideia, encontrada demasiadas vezes nas discussões filosóficas, de que estas respostas duvidosas surgem do "erro" dos pensadores criticados que por sua vez deve ser corrigido através do "raciocínio adequado". Agir assim seria cometer o mesmo pecado que o nosso adversário.

O discurso crítico de Robert Owen e o seu remédio educacional nada têm a ver com o "erro lógico". A diluição da sua diagnose social num ponto crucial, e a circularidade das soluções vagas e intemporais oferecidas por Owen, são descarrilamentos práticos necessários, devidos não à lógica formal defeituosa do auto mas sim à incorrigibilidade da lógica perversa do capital. É este último que categoricamente lhe nega a possibilidade de encontrar respostas numa genuína associação comunitária com o sujeito social cujo potencial "carácter de ferocidade bruta" ele teme. É assim que ele acaba com a contradição – não lógica mas de fundamento prático – de querer mudar as relações desumanas estabelecidas enquanto rejeita, como um perigo sério, a única e possível alternativa social hegemónica. A contradição insolúvel reside na concepção de Owen da mudança significativa como a perpetuação do existente. A circularidade que vimos no seu raciocínio é a consequência necessária da assunção de um "resultado": "razão" triunfante (prosseguindo em segurança através de "pequenos passos"), que prescreve o "erro e a ignorância" como o problema adequadamente rectificado, para o qual se supõe ser a razão eminentemente adequada a resolver. Desta forma, mesmo que inconscientemente, a relação entre o problema e a sua solução na verdade está revertida, com isso redefinindo ahistoricamente o primeiro de maneira a ajustar-se à solução – capitalisticamente permissível – que fora conceptualmente preconcebida. É isto o que acontece mesmo quando um reformador social e educacional iluminado, que honestamente tenta remediar os efeitos alienantes e desumanizantes do "poder do dinheiro" e da "procura do lucro" que ele deplora, não pode escapar ao colete-de-forças auto-imposto das determinações causais do capital.

O impacto da lógica incorrigível do capital sobre a educação tem sido grande ao longo do desenvolvimento do sistema. Apenas as modalidades de imposição dos imperativos estruturais do capital no domínio educacional mudaram desde os primeiros dias sangrentos da "acumulação primitiva" até ao presente, em sintonia com as circunstâncias históricas alteradas, como veremos na próxima secção. É por isso que hoje o significado da mudança educacional radical não pode ser senão o rasgar do colete-de-forças da lógica incorrigível do sistema: através do planeamento e da prossecução consistente da estratégia de quebrar a regra do capital com todos os meios disponíveis, assim como com todos aqueles que ainda têm de ser inventados neste espírito.

2. Os remédios não podem ser só formais; eles devem ser essenciais

Parafraseando a epígrafe retirada de José Martí, podemos com ele dizer que "os remédios não podem ser apenas formais; eles devem ser essenciais". [10]

A educação institucionalizada, especialmente nos últimos cento e cinquenta anos, serviu – no seu todo – o propósito de não só fornecer os conhecimentos e o pessoal necessário à maquinaria produtiva em expansão do sistema capitalista mas também o de gerar e transmitir um quadro de valores que legitima os interesses dominantes, como se não pudesse haver nenhum tipo de alternativa à gestão da sociedade ou na forma "internacionalizada" (i.e. aceite pelos indivíduos "educados" devidamente) ou num ambiente de dominação estrutural hierárquica e de subordinação reforçada implacavelmente. A própria História tinha que ser totalmente adulterada, e de facto frequentemente falsificada de modo grosseiro, para este propósito. Fidel Castro, falando sobre a falsificação da história cubana após a guerra de independência do colonialismo espanhol, dá um exemplo impressionante:
"¿Qué nos dijeron en la escuela? ¿Qué nos decían aquellos inescrupulosos libros de historia sobre los hechos? Nos decían que la potencia imperialista no era la potencia imperialista, sino que, lleno de generosidad, el gobierno de Estados Unidos, deseoso de darnos la liberdad, había intervenido en aquella guerra y que, como consecuencia de eso, éramos libres. Pero no éramos libres por cientos de miles de cubanos que murieron durante 30 años en los combates, no éramos libres por el gesto heroico de Carlos Manuel de Céspedes, el Padre de la Patria, que inició aquella lucha, que incluso prefirió que le fusiliaran al hijo antes de hacer una sola concesión; no éramos libres por el esfuezo heroico de tantos cubanos, no éramos libres por la predica de Martí, no éramos libres por el esfuerzo heroico de Máximo Gómez, Calixto García y tantos aquellos próceres ilustres; no éramos libres por la sangre derramada por las veinte y tantas heridas de Antonio Maceio y su caída heroica en Punta Brava; éramos libres sencillamente porque Teodoro Roosevelt desembarcó con unos quantos rangers en Santiago de Cuba para combatir contra un ejército agotado y prácticamente vencído, o porque los acorazados americanos hundieron a los 'cacharros' de Cerveza frente a la bahia de Santiago de Cuba. Y esas monstruosas mentiras, esas increíbles falsedades eran las que se enseñaban en nuestras escuelas." [11]
As deturpações deste tipo constituem a normalidade quando os riscos são realmente elevados, e é particularmente assim quando eles respeitam directamente à racionalização e legitimação da ordem social estabelecida como a "ordem natural" supostamente inalterável. A história tem então que ser reescrita e propagandeada de uma forma ainda mais distorcida não só nos órgãos amplamente difundidos de formação da opinião política, desde os jornais de massas aos canais de rádio e de televisão, mas até nas supostamente teorias académicas objectivas. Marx oferece uma caracterização devastadora de como uma questão vital da história do capitalismo, conhecida como a acumulação primitiva ou original do capital, é tratada pela ciência da Economia Política. Ele escreve num poderoso capítulo de O Capital:
"A acumulação primitiva desempenha na economia política quase o mesmo papel que o pecado original na teologia. Adão mordeu a maçã e por isso o pecado abateu-se sobre a espécie humana. Pretende-se explicar a origem da acumulação por meio de uma anedota ocorrida num passado distante. Havia outrora, em tempos muito remotos, duas espécies de gente: uma elite laboriosa, inteligente e sobretudo frugal, e uma população constituída de vadios, trapalhões que gastavam mais do que tinham. A lenda teológica conta-nos que o homem foi condenado a comer o pão com o suor do seu rosto. Mas a lenda económica explica-nos o motivo porque existem pessoas que escapam a esse mandamento divino. … Aconteceu que a elite foi acumulando riquezas e a população vadia acabou por ficar sem ter outra coisa para vender além da própria pele. Temos aí o pecado original da economia. Por causa dele, a grande massa é pobre e, apesar de se esfalfar, só tem para vender a própria força de trabalho, enquanto cresce continuamente a riqueza de poucos, embora esses poucos tenham cessado de trabalhar há muito. Tal infantilidade insípida nos é pregada todos os dias para a defesa da propriedade. … Na história real, é um facto notório que a conquista, a escravização, o roubo, o assassinato, em resumo, a força, desempenha o maior papel. Nos delicados anais da economia política, o idílico reina desde tempos imemoriais. … Como matéria de facto, os métodos da acumulação primitiva são tudo menos idílicos. … O proletariado criado pela separação dos bandos de servos feudais e pela expropriação forçada dos solos às pessoas, este proletariado 'livre' [ vogelfrei, i.e., 'livre como um pássaro'] não podia ser absorvido pelas manufacturas nascentes tão depressa como foi atirado ao mundo. Por outro lado, estes homens, repentinamente arrancados do seu modo de vida habitual, não podiam adaptar-se repentinamente à disciplina da sua nova condição. Eles foram, em massa, transformados em pedintes, ladrões e vagabundos, em parte por inclinação, na maioria dos casos devido ao stress das circunstâncias. Portanto no final do século XV e durante todo o século XVI, por toda a Europa ocidental [foi instituída] uma legislação sanguinária contra a vagabundagem. Os pais da presente classe trabalhadora foram punidos pela sua transformação forçada em vagabundos e pobres. A legislação tratava-os como criminosos 'voluntários', e assumia que dependia da sua boa vontade continuarem a trabalhar sob as anteriores condições que de facto já não existiam . …Dentre os pobres fugitivos, acerca dos quais Thomas More diz que foram forçados a roubar, '72.000 grandes e pequenos ladrões foram mortos' no reinado de Henrique VIII. [12]
Naturalmente, nem mesmo os altamente respeitados pensadores da classe dominante podiam adoptar uma atitude que divergisse do modo cruel de subjugar aqueles que têm de ser mantidos sob o mais estrito controle no interesse da ordem estabelecida. Não até que a própria mudança das condições de produção modificasse a necessidade de uma força de trabalho – grandemente ampliada – sob as condições expansionistas da revolução industrial.

No tempo em que John Locke escrevia, havia uma maior procura de pessoas empregáveis lucrativamente do que no tempo de Henrique VIII, mesmo que ainda muito distante do que veio a suceder durante a revolução industrial. Portanto a "população excedentária" em diminuição significativa não teve de ser fisicamente eliminada como anteriormente. Todavia, tinha de ser tratada de uma forma mais autoritária, racionalizando-se ao mesmo tempo a brutalidade e a desumanidade recomendadas em nome de uma alta e bombástica moralidade. Deste modo, nas últimas décadas do século XVII, em conformidade com o ponto de vista capitalista da economia política da época, o grande ídolo do liberalismo moderno, John Locke – um latifundiário absenteísta em Somersetshire bem como o responsável do governo mais generosamente pago – pregava a mesma "infantilidade insípida", tal como descrita por Marx. Locke insistiu em que a causa para "O crescimento dos pobres… não pode ser nada mais do que o relaxamento da disciplina e a corrupção dos hábitos; estando a virtude e a indústria como companheiros constantes de um lado assim como o vício e a ociosidade estão do outro. Portanto, o primeiro passo no sentido de colocar os pobres no trabalho… deve ser a restrição da sua libertinagem através de uma execução estrita das leis contra ela existentes [por Henrique VIII e outros]. [13]

Recebendo anualmente a remuneração quase astronómica de cerca de £1,500 pelos seus serviços ao governo (como Comissário no Board of Trade, um dos seus vários cargos), Locke não hesitou em louvar a perspectiva de os pobres ganharem "um centavo por dia" [14] (a penny per diem), ou seja, uma soma aproximadamente 1.000 vezes inferior ao seu próprio vencimento em apenas um dos seus cargos governamentais. Não surpreendentemente, portanto, "O valor dos seus bens quando faleceu – quase £20,000, das quais £12,000 eram em dinheiro – era comparável ao de um comerciante próspero de Londres". [15] Um grande feito para uma pessoa cuja principal fonte de receitas era ordenhar – confessadamente de bom grado – o Estado!

Além disso, sendo um verdadeiro cavalheiro, com um muito elevado interesse a proteger, ele também queria regular os movimentos dos pobres através da medida perversa dos passes, propondo que: "Todos os homens a mendigar nos municípios marítimos sem passes, que sejam aleijados ou tenham mais que 50 anos de idade, e todos os de qualquer idade também mendigando sem passes nos municípios do interior sem qualquer orla marítima, devem ser enviados para uma casa de correcção próxima, para aí serem mantidos em trabalhos pesados durante três anos". [16] E enquanto as leis brutais de Henrique VIII e de Eduardo VI pretendiam cortar apenas " metade da orelha" dos criminosos reincidentes, o nosso grande filósofo liberal e responsável do Estado – uma das figuras dominantes do Iluminismo inglês – sugeriu uma melhoria de tais leis ao recomendar solenemente a perda de ambas as orelhas, a ser administrada àqueles que cometessem um crime pela primeira vez. [17]

Ao mesmo tempo, no seu Memorandum on the Reform of the Poor Law, Locke também propôs a instituição de casas de trabalho para os filhos dos pobres ainda de tenra idade, argumentando que: "Os filhos das pessoas trabalhadoras são um fardo comum para a paróquia, e habitualmente são mantidas na ociosidade, de forma que o seu trabalho também é geralmente perdido para o público até que eles atinjam doze ou catorze anos de idade. O remédio mais eficaz para isto que somos capazes de conceber, e o qual deste modo humildemente propomos, é o de que, na acima mencionada lei a ser decretada, seja além disso determinado que se criem escolas de trabalho em todas as paróquias, às quais os filhos de todos tal como exige o alívio da paróquia, acima dos três e abaixo dos catorze anos de idade … devem ser obrigados a ir". [18]

Não sendo ele próprio um homem religioso, a principal preocupação de Locke era combinar disciplina de trabalho severa e doutrinação religiosa com a máxima frugalidade financeira municipal e estatal. Ele argumentava que "Também outra vantagem de levar as crianças a uma escola prática é que desta forma elas podem ser obrigadas a ir à igreja todos os domingos, juntamente com os seus professores ou professoras, na qual podem ser levados a ter algum sentido de religião; ao passo que agora, de forma geral, no seu ócio e na sua educação descontraída, eles são totalmente estranhos tanto à religião e à moralidade como o são para a indústria ". [19]

Obviamente, então, as medidas que tinham de ser aplicadas aos "trabalhadores pobres" eram radicalmente diferentes daquelas que os "homens da razão" consideravam adequadas para si próprios. No final tudo se reduzia a relações de poder nuas, impostas com extrema brutalidade e violência no decurso dos primeiros desenvolvimentos capitalistas, desprezando a forma como eram racionalizadas nos "delicados anais da economia política", nas palavras de Marx.

Naturalmente, as instituições de educação tiveram de ser adaptadas no decorrer do tempo, de acordo com as determinações reprodutivas em mutação do sistema capitalista. Deste modo, teve de se abandonar a extrema brutalidade e a violência legalmente impostas como meio educativo – anteriormente não só inquestionavelmente aceite mas até activamente promovida por figuras do início do Iluminismo, como o próprio Locke, como acabámos de ver. Elas foram abandonadas não devido a considerações humanitárias, mesmo que tenham sido frequentemente racionalizadas em tais termos, mas porque a manutenção da maquinaria da imposição severa se mostrou economicamente devastadora ou pelo menos supérflua. E isto era verdadeiro não só para as instituições formais de educação mas também em alguns domínios indirectamente ligados às ideias educacionais. Para mostrar apenas um exemplo significativo, o êxito inicial da experiência de Robert Owen deveu-se não ao humanitarismo paternalista deste capitalista esclarecido, mas à vantagem produtiva relativa aproveitada inicialmente pela iniciativa industrial da sua comunidade utópica. Graças à redução da absurdamente longa jornada de trabalho que prevalecia como regra geral na época, a aproximação "Owenística" ao trabalho resultou numa muito maior intensidade de realização produtiva durante o horário reduzido. Contudo, quando práticas similares foram mais amplamente difundidas, uma vez que eles tinham de aceitar as regras da concorrência capitalista, a sua empresa passou a estar condenada e foi à falência, não obstante as indubitavelmente avançadas visões de Robert Owen em matéria educacional.

As determinações abrangentes do capital afectam profundamente cada domínio singular com algum peso na educação, e de forma alguma apenas as instituições educacionais formais. Estas últimas estão estritamente integradas na totalidade dos processos sociais. Elas não podem funcionar adequadamente, excepto se estiverem em sintonia com as determinações educacionais abrangentes da sociedade como um todo.

Aqui a questão crucial, sob a regra do capital, é assegurar a adopção por cada indivíduo das aspirações reprodutivas objectivamente possíveis da sociedade como "o seu próprio objectivo". Por outras palavras, num sentido verdadeiramente amplo do termo educação, trata-se de uma questão de "interiorização" pelos indivíduos – como indicado no segundo parágrafo desta secção – da legitimidade do posto que lhes foi atribuído na hierarquia social, juntamente com as suas "próprias" expectativas e as formas de conduta "certas" mais ou menos explicitamente estipuladas nessa base. Enquanto a interiorização pode fazer o seu bom trabalho, para assegurar os parâmetros reprodutivos abrangentes do sistema capitalista, a brutalidade e a violência podem ser postas de parte (embora de modo algum permanentemente abandonadas) como modalidades dispendiosas de imposição de valor, como de facto aconteceu no decurso dos desenvolvimentos capitalistas modernos. Apenas em períodos de crise aguda se dá de novo projecção ao arsenal da brutalidade e da violência com o objectivo de impor valores, como o demonstraram em tempos recentes as tragédias dos muitos milhares de desaparecidos no Chile e na Argentina.

Para terem a certeza, as instituições de educação formais são uma parte importante do sistema global da interiorização. Mas apenas uma parte. Quer os indivíduos participem ou não – durante menores ou maiores, mas sempre bastante limitados, números de anos – nas instituições de educação formais, eles devem ser induzidos a uma aceitação activa (ou mais ou menos resignada) dos princípios reprodutivos orientadores dominantes da própria sociedade, adequados aos seu posto na ordem social, e de acordo com as tarefas reprodutivas que lhe foram assinaladas. Sob as condições da escravidão ou da servidão feudal isto é, naturalmente, um problema bastante diferente daquele que deve prevalecer sob o capitalismo, mesmo quando os indivíduos trabalhadores formalmente não são de todo, ou são muito pouco, educados no sentido formal do termo. Todavia, ao interiorizarem as pressões exteriores omnipresentes, eles têm de adoptar as perspectivas globais da sociedade de consumo como os limites individuais inquestionáveis das suas próprias aspirações. Apenas a mais consciente acção colectiva pode destrinça-los desta grave situação paralisante.

Vista nesta perspectiva, torna-se bastante claro que a educação formal não é a força ideologicamente primária que cimenta o sistema capitalista; nem é capaz de, por si só, fornecer uma alternativa emancipadora radical. Uma das funções principais da educação formal nas nossas sociedades é produzir tanta conformidade ou "consenso" quanto for capaz a partir de dentro e através dos seus próprios limites institucionalizados e legalmente sancionados. Esperar da sociedade mercantilizada a promulgação activa – ou mesmo a mera tolerância – de um mandato às suas instituições de educação formal que as convidasse a abraçar plenamente a grande tarefa histórica do nosso tempo: ou seja, a tarefa de romper com a lógica do capital no interesse da sobrevivência humana, seria um milagre monumental. É por isso que, também no domínio educacional, os remédios "não podem ser formais; eles devem ser essenciais ". Por outras palavras, eles devem abarcar a totalidade das práticas educacionais da sociedade estabelecida.

Os remédios educacionais formais, mesmo alguns dos maiores, e mesmo quando são sacramentados pela lei, podem ser completamente invertidos, desde que a lógica do capital permaneça intacta como enquadramento orientador da sociedade. Na Grã-Bretanha, por exemplo, durante várias décadas, os principais debates acerca da educação centraram-se na questão das " Escolas Abrangentes " ("Comprehensive Schools"), a serem instituídas em substituição do sistema educativo elitista há muito estabelecido. Durante aqueles debates o Partido Trabalhista Britânico não só adoptou como chave do programa eleitoral a estratégia geral de substituir o anterior sistema privilegiado de aprendizagem pelas "Escolas Abrangentes", como de facto também consagrou legalmente esta política depois de ter constituído como governo, embora mesmo então não tenha ousado tocar no mais privilegiado sector da educação, as "Escolas Públicas". [20] Hoje, contudo, o governo britânico do "New Labour" está inclinado a desmantelar o sistema da escola abrangente, não só através da reedição das antigas instituições educacionais elitistas como também, em acréscimo a estas, através da instituição de uma nova variedade de "academias" favoráveis à classe média, apesar de todo o criticismo mesmo entre os seus próprios apoiantes acerca do estabelecimento de um sistema de "duas vias" ("two-tier system"), tal como está em vias de ser estabelecido e reforçado pelo governo um sistema de duas vias no "Serviço Nacional de Saúde" britânico.

Assim, ninguém pode realmente escapar da "formidável prisão" do sistema escolar estabelecido (condenado nestes termos por José Martí) simplesmente reformando-o. Pois o que lá estava antes de tais reformas mais cedo ou mais tarde será certamente restabelecido devido ao fracasso absoluto em desafiar através de qualquer mudança institucional isolada a lógica agressiva global do próprio capital. O que precisa ser confrontado e alterado fundamentalmente é todo o sistema de interiorização, com todas as suas dimensões visíveis e escondidas. Romper a lógica do capital no campo da educação é portanto sinónimo da substituir as formas omnipresentes e profundamente enraizadas de interiorização mistificante por uma alternativa positiva abrangente.

Esta é a questão para a qual agora nos devemos voltar.

3. "A aprendizagem é a nossa vida, desde a juventude até à velhice"

Na sua época Paracelso estava absolutamente certo, e não está menos certo actualmente: "A aprendizagem é a nossa vida, desde a juventude até à velhice, de facto quase até à morte; ninguém vive durante dez horas sem aprender." A grande questão é: o que é que aprendemos de uma forma ou de outra? Será ela conducente à auto-realização dos indivíduos como "indivíduos socialmente ricos" humanamente (nas palavras de Marx), ou está ela ao serviço da perpetuação, consciente ou não, da ordem social alienante e finalmente incontrolável do capital? Será o conhecimento necessário para transformar em realidade o ideal da emancipação humana, em conjunto com a determinação sustentada e a dedicação dos indivíduos para conduzir a auto-emancipação da humanidade até à sua conclusão com êxito, apesar de todas as adversidades, ou é, pelo contrário, a adopção por indivíduos particulares de modos de comportamento que apenas favorecem a realização dos fins reificados do capital? Neste mais vasto e mais profundo significado da educação, que inclui de forma proeminente todos os momentos da nossa vida activa, podemos concordar com Paracelso em que tanto (praticamente tudo) é decidido, para o bem e para o mal – não apenas para nós próprios como indivíduos mas simultaneamente também para a humanidade – em todas aquelas inelutáveis horas em que não podemos passar "sem aprender". Isto é assim porque "a aprendizagem é, verdadeiramente, a nossa vida". E como tanto é decidido desta forma para o bem e para o mal, o êxito depende de tornar este processo de aprendizagem, no sentido amplo do "Paracelsiano", um processo consciente, de forma a maximizar o melhor e a minimizar o pior.

Apenas a mais vasta concepção de educação nos pode ajudar a insistir no objectivo de uma mudança verdadeiramente radical proporcionando alavancas que rompam a lógica mistificadora do capital. Esta maneira de abordar os assuntos é, de facto, tanto a esperança como a garantia do êxito possível. Por contraste, cair na tentação dos arranjos institucionais formais – "a pouco e pouco", como afirma a sabedoria reformista desde tempos imemoráveis – significa permanecer aprisionado dentro do círculo vicioso institucionalmente articulado e protegido desta lógica auto-interessada do capital. Esta última forma de encarar tanto os problemas em si mesmos como as suas soluções "realistas" é cuidadosamente cultivada e propagandeada nas nossas sociedades, enquanto que a alternativa genuína e de alcance amplo e prático é desqualificada aprioristicamente e afastada bombasticamente como sendo "gestos políticos". Esta espécie de aproximação é incuravelmente elitista mesmo quando se pretende democrática. Porque limita tanto a educação como a actividade intelectual da maneira mais estreita possível, como a única forma certa e adequada de preservar os "padrões civilizados" daqueles destinados a "educar" e governar, contra a "anarquia e a subversão". Simultaneamente exclui a esmagadora maioria da humanidade do âmbito da acção como sujeitos, e condena-os para sempre a serem apenas influenciados como objectos (e manipulados no mesmo sentido), em nome da presumida superioridade da elite: "meritocrática", "tecnocrática", "empresarial", ou o que quer que seja.

Contra a concepção tendencialmente estreita de educação e da vida intelectual, cujo fim obviamente é manter o proletariado "no seu lugar", Gramsci argumentava energicamente há muito tempo atrás que "Não há qualquer actividade humana da qual se possa excluir toda a intervenção intelectual – o homo faber não pode ser separado do homo sapiens. Também todo o homem, fora do seu emprego, desenvolve alguma actividade intelectual; ele é, por outras palavras, um 'filósofo', um artista, um homem experiente, ele partilha a concepção do mundo, ele tem uma linha consciente de conduta moral, e portanto contribui no sentido de manter ou mudar a concepção do mundo, isto é, no sentido de encorajar novas formas de pensamento" [21]

Como podemos observar, a posição de Gramsci é profundamente democrática. É a única defensável. A sua conclusão é dupla. Primeiro, ele insiste em que todo o ser humano contribui, de uma forma ou de outra, para a formação da concepção predominante do mundo. E, segundo, ele sublinha que tal contribuição pode cair nas categorias contrastantes da "manutenção" e da "mudança". Pode não ser apenas uma ou outra mas ambas em simultâneo. Qual das duas é mais acentuada, e em que grau, irá obviamente depender da forma como as forças sociais conflitantes se confrontam e sustêm os seus interesses alternativos importantes. Por outras palavras, a dinâmica da história não é uma qualquer força externa misteriosa mas a intervenção de uma enorme multiplicidade de seres humanos no actual processo histórico, na linha da "manutenção e/ou mudança" – num período relativamente estático bastante mais de "manutenção" do que de "mudança", ou vice-versa na altura de uma grande elevação na intensidade de confrontações hegemónicas antagonistas – uma dada concepção do mundo, e por conseguinte atrasando ou apressando a chegada de uma mudança social significativa.

Isto coloca em perspectiva as reivindicações elitistas de políticos auto-nomeados e educadores. Pois eles não podem mudar à vontade a "concepção do mundo" da sua época, não importa o quanto gostariam de o fazer, e não importa quão maciço possa ser o aparelho de propaganda à sua disposição. Um processo colectivo inelutável de proporções elementares não pode ser expropriado por bem mesmo pelos mais espertos e mais generosamente financiados operadores políticos e intelectuais. Se não fosse por este inconveniente "facto brutal", posto tão poderosamente em evidência por Gramsci, o domínio da educação institucional formal estreita poderia reinar para sempre em favor do capital.

Nenhuma quantidade de manipulação vinda de cima pode transformar o imensamente complexo processo de modelar a visão geral do mundo dos nossos tempos – constituída de incontáveis concepções particulares na base de interesses hegemónicos alternativos irreconciliáveis objectivamente, independentemente do quão conscientes possam estar os indivíduos envolvidos acerca dos antagonismos estruturais subjacentes – num dispositivo homogéneo e uniforme, funcionando como o promotor permanente da lógica do capital. Nem mesmo o aspecto da " manutenção " pode ser considerado um constituinte passivo da concepção do mundo dominante do indivíduo. Mesmo que de uma maneira muito diferente do aspecto da "mudança", a visão do mundo de uma época é contudo activa e benéfica para o capital apenas enquanto se mantém activa. Isto significa que a "manutenção" tem (e deve ter) a sua própria base de racionalidade, independentemente de quão problemática é em relação à alternativa hegemónica do trabalho. Isto é, ela não só tem de ser produzida pelas classes estruturalmente dominadas de indivíduos em determinado momento no tempo, mas do mesmo modo tem de ser constantemente reproduzida por eles, sujeitas (ou não) à permanência à sua base de racionalidade original. Quando uma maioria significativa da população – algo aproximada aos 70 por cento em muitos países – se afasta com desdém do "processo democrático" do ritual eleitoral, tendo lutado no passado pelo direito ao voto durante décadas, isto mostra uma mudança real de atitude face à ordem dominante; pode-se dizer que é uma rachadura nas espessas camadas de gesso cuidadosamente depositadas sobre a fachada "democrática" do sistema. Contudo, de modo algum se poderia ou deveria interpretar isto como um afastamento radical da "manutenção" da concepção do mundo actualmente dominante.

Naturalmente, as condições são muito mais favoráveis à atitude da "mudança" e à emergência de uma concepção do mundo alternativa a meio de uma crise revolucionária, descrita por Lenin como o tempo "em que as classes dominantes já não podem governar à maneira antiga, e as classes subordinadas já não querem viver à maneira antiga". Estes são momentos absolutamente extraordinários na história, e não podem ser prolongados como se poderia desejar, como o demonstraram no passado os fracassos das estratégias voluntaristas. [22] Portanto, em relação quer à "Manutenção" quer à "mudança" de uma dada concepção do mundo, a questão fundamental é a necessidade de modificar, de uma forma duradoura, o modo de interiorização historicamente prevalecente. Romper a lógica do capital no âmbito da educação é absolutamente inconcebível sem isto. E, mais importante, esta relação pode e tem de ser expressa também de uma forma positiva. Pois através de uma mudança radical no modo de interiorização agora repressivo, que sustenta a concepção dominante do mundo, o domínio do capital pode ser e será quebrado.

Nunca é demasiado sublinhar a importância estratégica da concepção mais ampla de educação, expressa na frase: "a aprendizagem é a nossa própria vida". Pois muito do nosso processo continuado de aprendizagem se situa, felizmente, fora das instituições educacionais formais. Felizmente, porque esses processos não podem ser prontamente manipulados e controlados pela estrutura educacional formal legalmente salvaguardada e sancionada. Eles comportam tudo, desde o brotar das nossas respostas críticas relativamente aos ambientes materiais mais ou menos desprovidos na nossa infância, assim como o nosso primeiro encontro com poesia e a arte, até às nossas diversas experiências de trabalho, sujeitas a um escrutínio equilibrado por nós próprios e pelas pessoas com quem as partilhamos, e, claro, até ao nosso envolvimento de muitas maneiras diferentes em conflitos e confrontos durante a nossa vida, incluindo as disputas morais, políticas e sociais dos nossos dias. Apenas uma pequena parte disto está directamente ligada à educação formal. Contudo eles têm uma enorme importância não só nos nossos anos precoces de formação como durante a nossa vida, quando tanto tem que ser reavaliado e trazido a uma unidade coerente, orgânica e viável sem a qual não poderíamos possuir uma personalidade, mas tombaríamos em peças fragmentárias: não presta, defeituoso mesmo para o serviço de fins sócio-políticos autoritários. O pesadelo em 1984 de Orwell não é realizável precisamente porque a esmagadora maioria das nossas experiências constitutivas permanece – e permanecerá sempre – fora do domínio do controlo e coerção institucional formal. Para ter a certeza, muitas escolas podem causar um grande prejuízo, portanto merecendo totalmente as severas críticas de Martí como "prisões terríveis". Mas mesmo as suas piores redes não podem prevalecer uniformemente. Os jovens podem encontrar alimento intelectual, moral e artístico noutros lados. Pessoalmente fui muito afortunado por encontrar, com oito anos de idade, um professor notável. Não na escola mas quase por acaso. Ele tem sido meu companheiro desde então, todos os dias. O seu nome é Attila József: um gigante da literatura mundial. Aqueles que leram a epígrafe do meu livro, Beyond Capital, já conhecem o seu nome. Mas deixem-me citar algumas linhas de outro dos seus grandes poemas, escolhido para epígrafe do meu próximo livro. Em espanhol elas lêem-se como se segue:

Ni Dios ni la mente, sino
el carbón, el hierro y el petróleo,

la materia real nos ha creado
echándonos hirvientes y violentos
en los moldes de esta
sociedad horrible,
para afincarnos, por la humanidad,
en el eterno suelo.

Después los sacerdotes, los soldados y los burgueses,
al fin nos hemos vuelto fieles
oidores de las leyes:
por eso el sentido de toda obra humana
zumba en nosotros
como el violón.
[23]

Estas linhas foram escritas há setenta anos, em 1933, quando Hitler conquistou o poder na Alemanha. Mas elas falam hoje a todos nós com maior intensidade do que em qualquer época anterior. Elas convidam-nos a "ouvir as leis atenta e verdadeiramente" e a proclamá-las sonora e claramente por toda a parte. Porque hoje está em jogo nada menos do que a própria sobrevivência da humanidade. Nenhuma prática não educacional formal pode extinguir a validade e o poder duradouros de tais influências.

Sim, "a aprendizagem é a nossa própria vida", como Paracelso afirmou há quase cinco séculos atrás, e nas suas pegadas muitos outros também, que talvez nunca tenham sequer ouvido o seu nome. Mas para tornar esta verdade auto-evidente, como deveria ser, temos que reclamar o domínio total da educação para toda a vida, para que seja possível colocar em perspectiva a sua parte formal, a fim de instituir também aí uma reforma radical. Isto não pode ser feito sem desafiar as formas actualmente dominantes de interiorização, grandemente reforçadas a favor do capital através do próprio sistema educacional formal. De facto, da maneira como estão as coisas hoje, a principal função da educação formal é agir como um cão de guarda autoritário ex officio para induzir um conformismo generalizado em determinados modos de interiorização, de forma a subordiná-los às exigências da ordem estabelecida. O facto de a educação formal não poder ter êxito na criação de uma conformidade universal não altera o facto de no seu todo estar orientada para aquele fim. Os professores e alunos que se rebelam contra tal desígnio fazem-no com a munição que adquiriram tanto dos seus companheiros rebeldes no interior do domínio formal, e a partir do campo mais amplo da experiência educacional "desde a juventude até à velhice".

Do que necessitamos extremamente, então, é de uma actividade de "contra-interiorização" coerente e sustentada que não se esgote na negação – independente do quão necessária é como uma fase neste empreendimento – mas defina os seus alvos fundamentais como a criação de uma alternativa abrangente positivamente sustentável ao que existe. Há cerca de trinta anos atrás estava a editar e a apresentar um volume de ensaios do notável historiador e pensador político filipino, Renato Constantino. Na altura ele foi mantido sob os mais rígidos constrangimentos autoritários do regime cliente dos EUA encabeçado pelo "general" Marcos. Na altura ele conseguiu passar-me a mensagem de que gostaria que o volume se intitulasse Neo Colonial Identity and Counter-Consciousness, [24] o nome com que de facto o livro mais tarde apareceu. Totalmente ciente do impacto escravizador da interiorização da consciência colonial no seu país, Constantino tentou sempre enfatizar a tarefa histórica de produzir um sistema de educação duradouro alternativo, com todos os meios à disposição do povo, bem além do domínio educacional formal. A "contra-consciência" adquiriu assim um significado positivo. Relativamente ao passado Constantino destacava que "Desde o seu início, a colonização espanhola operava mais através da religião do que através da força, afectando portanto profundamente a consciência. … A modelagem de consciências no interesse do controlo colonial seria repetida noutro plano pelos americanos, que após uma década de repressão maciça, operavam similarmente através da consciência, desta vez usando a educação e outras instituições culturais." [25] E ele tornou claro que a constituição de uma contra-consciência descolonizada envolvia directamente as massas populares no empreendimento crítico. Eis como ele definia o significado da "filosofia de libertação" que defendia: "É ela própria uma coisa em desenvolvimento dependendo dos crescimentos de consciência. … Não é contemplativa, é activa e dinâmica e abrange a situação objectiva assim como a reacção subjectiva das pessoas envolvidas. Não pode ser a tarefa de um grupo seleccionado, mesmo que este grupo se veja motivado pelos melhores interesses do povo. Precisa da participação da " espinha dorsal da nação. " [26] Por outras palavras, a aproximação educacional defendida tinha que adoptar a totalidade das práticas politicas/ educacionais/ culturais na mais ampla concepção de transformações emancipadoras. É este o modo como uma contra-consciência estrategicamente concebida, como a alternativa necessária à interiorização dominada colonialmente, poderia realizar o seu grande mandato educativo.

De facto o papel e a correspondente responsabilidade dos educadores não poderiam ser maiores. Pelo que, como José Martí tornou claro, a busca da cultura, no sentido próprio do termo, envolve o mais alto risco pois é inseparável do objectivo fundamental da libertação. Ele insistia que " Ser cultos es el único modo de ser libres ". E resumia de uma maneira bela a razão de ser da própria educação: " Educar es depositar en cada hombre toda la obra humana que le há antecedido; es hacer a cada hombre resumen del mundo viviente hasta el dia en que vive… ". [27] Isto é quase impossível dentro dos limites estreitos da educação formal como está constituída, sob todos os tipos de pesados constrangimentos, no nosso tempo. O próprio Martí sentiu que todo o processo de educar devia ser refeito em todos os aspectos, desde o seu início até ao seu final sempre em aberto, de modo a transformar a "terrível prisão" num lugar de emancipação e de realização genuína. Foi por isto que ele sozinho também escreveu e publicou um periódico mensal para os jovens em 1889, La Edad de Oro. [28]

É neste espírito que se podem reunir todas as dimensões da educação. Os princípios orientadores da educação formal devem desta forma ser destrinçados do seu envolvimento com a lógica de conformidade impositiva com o capital, movendo-se ao invés disso na direcção de um intercâmbio activo e positivo com práticas educacionais mais amplas. Eles precisam muito um do outro. Sem um intercâmbio progressivo consciente com processos de educação abrangentes como "a nossa própria vida" a educação formal não pode realizar as suas muito necessárias aspirações emancipadoras. Se, entretanto, os elementos progressistas da educação formal forem bem sucedidos em redefinir a sua tarefa num espírito orientado em direcção à perspectiva de uma alternativa hegemónica à ordem existente, eles podem dar uma contribuição vital para romper a lógica do capital não só no seu próprio limitado domínio como também na sociedade como um todo.

4. A educação como a "transcendência positiva da auto-alienação do trabalho".

Vivemos sob condições de alienação desumanizante e de uma subversão fetichista do estado real de coisas dentro da consciência (muitas vezes também caracterizada como "reificação"), porque o capital não pode exercer as suas funções sociais metabólicas de reprodução alargada em qualquer outra direcção. Mudar estas condições exige uma intervenção consciente em todos os domínios e a todos os níveis da nossa existência individual e social. É por isto que, segundo Marx, os seres humanos devem mudar "dos pés à cabeça as condições da sua existência industrial e política, e consequentemente toda a sua maneira de ser ". [29]

Marx também enfatizou o facto de que – se estivermos à procura do ponto Arquimediano a partir do qual as contradições mistificadoras da nossa ordem social podem ser tornadas tanto inteligíveis como superáveis – encontramos na raiz de todas as variedades de alienação a historicamente desvelada alienação do trabalho: um processo de auto-alienação escravizante. Mas precisamente porque estamos preocupados com um processo histórico, imposto não por uma agência exterior mítica de predestinação metafísica (caracterizada como a inelutável "condição humana" [30] ), nem sem dúvida por uma "natureza humana" imutável – o modo como muitas vezes este problema é tendenciosamente descrito, – mas pelo próprio trabalho, é possível ultrapassar a alienação através de uma reestruturação radical das nossas condições de existência há muito estabelecidas, e por conseguinte "toda a nossa maneira de ser".

Consequentemente, a necessária intervenção consciente no processo histórico, orientado pela tarefa adoptada de ultrapassar a alienação através de um novo metabolismo reprodutivo social dos "produtores livremente associados", este tipo de acção estrategicamente sustentada não pode ser apenas uma questão de negação, não importa quão radical. Pois na visão de Marx todas as formas de negação permanecem condicionadas pelo objecto da sua negação. E de facto pior que isso. Como a amarga experiência histórica nos demonstrou amplamente no passado recente, a inércia condicionadora do objecto negado tende a crescer de poder com o passar do tempo, impondo primeiro a busca de "uma linha de menor resistência" e subsequentemente – com uma cada vez maior intensidade – a "racionalidade" de regressar às "práticas testadas" do status quo ante, as quais são obrigadas a sobreviver nas dimensões não reestruturadas da ordem anterior.

É aqui que a educação – no sentido mais abrangente do termo, como foi examinado acima – aparece. Inevitavelmente, os primeiros passos de uma grande transformação social na nossa época envolvem a necessidade de manter sob controlo o estado político hostil que se opõe, e pela sua própria natureza se deve opor, a qualquer ideia de uma reestruturação societária abrangente. Neste sentido a negação radical da estrutura completa de comando político do sistema estabelecido deve afirmar-se, na sua inevitável negatividade predominante, na fase inicial da transformação planeada. Mas mesmo nessa fase, e de facto antes da conquista do poder político, a negação necessária é adequada para o seu papel assumido apenas se for enformado positivamente pelo alvo global da transformação social contemplada, como a bússola de toda a caminhada. Portanto o papel da educação é de importância vital desde o início para quebrar a interiorização prevalecente das escolhas políticas confinadas à "legitimação constitucional democrática" do Estado capitalista nos seus próprios interesses. Pois também esta "contra-interiorização" (ou contra-consciência") exige a antecipação dos contornos positivos abrangentes de uma forma radicalmente diferente de gerir as funções globais de decisão da sociedade, muito para além da expropriação do poder de tomar todas as decisões fundamentais há muito estabelecidas, assim como das suas imposições sem cerimónia aos indivíduos, através de políticas como a forma de alienação por excelência na ordem existente.

Contudo, a tarefa histórica que temos de enfrentar é incomensuravelmente maior que a negação do capitalismo. O conceito de ir para além do capital é inerentemente positivo. Ele tem em vista a realização de uma ordem social metabólica que positivamente se sustente a si própria, sem nenhuma referência auto-justificante aos males do capitalismo. Deve ser este o caso dado que a negação directa das várias manifestações de alienação é ainda condicionado por aquilo que ela nega, e portanto permanece vulnerável em virtude dessa condicionalidade.

A estratégia reformista da defesa do capitalismo é de facto baseada na tentativa de postular um mudança gradual na sociedade através da qual se removem defeitos específicos, de forma a sabotar a base sobre a qual as reivindicações para um sistema alternativo podem ser articuladas. Isto é factível só numa teoria tendenciosamente ficcional, uma vez que os remédios preconizados das "reformas" na prática são estruturalmente irrealizáveis dentro da estrutura estabelecida de sociedade. Desta forma torna-se claro que o objecto real do reformismo não é de forma alguma aquele que reivindica para si próprio: o remédio verdadeiro dos inegáveis defeitos específicos, mesmo que a sua magnitude seja deliberadamente minimizada, e mesmo que o caminho projectado para lidar com eles seja auto-indulgentemente admitido como muito lento. O único termo que tem de facto um sentido objectivo neste discurso é " gradual ", e mesmo este é loucamente inflacionado dentro de uma estratégia global, a qual não pode ser alcançada. Pois os defeitos específicos do capitalismo não podem sequer ser observados superficialmente, quanto mais curados genuinamente, sem os referir ao sistema como um todo que necessariamente os produz e constantemente os reproduz.

A recusa reformista em dirigir-se às contradições do sistema existente, em nome da legitimidade assumida de lidar apenas com as manifestações particulares – ou nas suas variações pós-modernas, a rejeição apriorística das chamadas " grandes narratives " em nome de " petits récits " idealizados arbitrariamente – é na realidade apenas uma forma peculiar de rejeitar sem uma análise adequada a possibilidade de qualquer sistema rival, e uma forma igualmente apriorística de eternizar o sistema capitalista. O objecto real da justificação reformista é, de forma especialmente mistificadora, o sistema dominante como tal, e não as partes quer do sistema rejeitado quer do defendido, não obstante o alegado zelo reformista explicitamente declarado pelos proponentes da "mudança gradual". [31] O necessário fracasso em revelar a verdadeira preocupação do reformismo decorre da sua incapacidade para sustentar a validade intemporal da ordem política e sócio-económica estabelecida. É, na realidade, totalmente inconcebível sustentar a validade intemporal e a permanência de qualquer coisa criada historicamente. É isto que torna inevitável, em todas as variedades sócio-políticas do reformismo, tentar e desviar a atenção das determinações sistémicas – que no final de contas definem o carácter de todos os assuntos vitais – para disputas mais ou menos aleatórias sobre efeitos específicos enquanto deixam a sua incorrigível base causal não só incontestavelmente permanente como também omissa.

Tudo isto permanece escondido pela própria natureza do discurso reformista. E precisamente devido ao carácter mistificador de tal discurso cujos elementos fundamentais muitas vezes permanecem escondidos até para os seus ideólogos, não tem qualquer importância para os fiéis deste credo que num determinado momento da história – como com a chegada do "New Labour" e do seu irmão na Grã-Bretanha –e partidos irmãos na Alemanha, França, Itália e em qualquer outro lado – a própria ideia de uma qualquer reforma social significativa seja completamente abandonada, e contudo as reivindicações de um "avanço" aparente (que não levam a parte alguma realmente diferente) são dissimuladamente reafirmadas. Assim mesmo as antigas diferenças entre os principais partidos são convenientemente obliteradas no agora dominante estilo americano do sistema de "dois partidos" (um partido), não importa quantos "sub-partidos" possam ainda encontrar-se em determinados países. O que permanece constante é a defesa mais ou menos oculta das actuais determinações sistémicas da ordem existente. O axioma pernicioso a asseverar que " não há alternativa " – falando não apenas sobre determinadas instituições políticas mas sobre a ordem social estabelecida em geral – é tão aceitável para a anterior primeira-ministra do Partido Conservador Britânico, Margaret Thatcher (que o patrocinou e popularizou), como para o chamado "New Labour" do actual primeiro-ministro Tony Blair, assim como para muitos outros no espectro político parlamentar mundial.

Tendo em vista o facto de que o processo de reestruturação radical deve ser orientado pela estratégia de uma positiva reforma abrangente de todo o sistema no qual se encontram as pessoas, o desafio que tem de ser enfrentado não tem paralelos na história. Pois o cumprimento desta nova tarefa histórica envolve simultaneamente a mudança qualitativa das condições objectivas de reprodução societária, no sentido de reconquistar o controle total do próprio capital – e não simplesmente das personificações do capital que afirmam os imperativos do sistema como capitalistas devotados – e a transformação progressiva da consciência em resposta às condições necessariamente cambiantes. Portanto o papel da educação é supremo tanto para a elaboração de estratégias apropriadas, adequadas a mudar as condições objectivas de reprodução, como para a auto-mudança consciente dos indivíduos chamados a concretizar a criação de uma ordem social metabólica radicalmente diferente. É isto que se quer dizer com a visão de uma "sociedade de produtores livremente associados". Portanto, não é surpreendente que na concepção marxista a "transcendência positiva da auto-alienação do trabalho" seja caracterizada como uma tarefa inequivocamente educacional.

A este respeito dois conceitos chave devem ser mantidos sob a nossa atenção: a universalização da educação e a universalização do trabalho como uma actividade humana auto-satisfatória. De facto nem uma das duas é viável sem a outra. Nem é possível pensar na sua estreita inter-relação como um problema para um futuro muito distante. Ele levanta-se "aqui e agora", e é relevante para todos os níveis e graus de desenvolvimento sócio-económico. Podemos encontrar um exemplo proeminente disto num discurso de Fidel Castro em 1983, relativo aos problemas que Cuba tinha de enfrentar através da aceitação do imperativo da universalização da educação, apesar das dificuldades aparentemente proibitivas não só em termos económicos mas também em conseguir os professores necessários. Foi assim que ele resumiu o problema:
"A la vez habíamos llegado ya a una situación en que el estudio se universalizaba. Y para universalizar el estudio en un país subdesarrollado y no petrolero – digamos –, desde el punto de vista económico era necesario universalizar el trabajo. Pero aunque fuésemos petroleros, habría sido altamente conveniente universalizar el trabajo, altamente formativo en todos los sentidos, y altamente revolucionario. Que por algo estas ideas fueron planteadas hace mucho tiempo por Marx y por Martí." [32]
As extraordinárias realizações educacionais em Cuba, desde a eliminação rápida e total do analfabetismo até aos mais elevados níveis de pesquisa científica criadora [33] – num país que tinha de lutar não só contra os constrangimentos económicos maciços do subdesenvolvimento como também contra o sério impacto de 45 anos de bloqueio hostil – são compreensíveis apenas em face deste enquadramento. Esta realização também demonstrou que não pode existir justificação para esperar a chegada de um "período favorável", no futuro indefinido. Avançar na estrada de uma abordagem qualitativamente diferente à educação e à aprendizagem pode e deve começar "aqui e agora", como indicado acima, se quisermos alcançar as mudanças necessárias no momento oportuno.

Não pode existir uma solução positiva para a auto-alienação do trabalho sem promover conscientemente a universalização conjunta do trabalho e da educação. Contudo, no passado poderia não existir uma possibilidade real para isto devido à subordinação estrutural hierárquica e à dominação do trabalho. Nem mesmo quando alguns grandes pensadores tentaram conceptualizar estes problemas com um espírito mais progressista. Assim, Paracelso, um modelo para o Fausto de Goethe, tentou universalizar o trabalho e a aprendizagem deste modo:
"embora o homem tenha sido criado inteiro relativamente ao seu corpo, ele não foi assim criado relativamente à sua 'arte'. Todas as artes lhe foram dadas, mas não numa forma imediatamente reconhecível; ele deve descobri-las através da aprendizagem. … A maneira adequada reside no trabalho e na acção, em fazer e produzir; o homem perverso nada faz, mas fala muito. Não devemos julgar um homem pelas suas palavras mas antes pelo seu coração. O coração fala através de palavras apenas quando elas são confirmadas por acções. … Ninguém vê o que está nele escondido, mas só o que o seu trabalho revela. Portanto o homem deveria trabalhar continuamente para descobrir o que Deus lhe deu". [34]
De facto, Paracelso afirmava que o trabalho (Arbeit) devia ser o princípio geral ordenador da sociedade. Ele foi mesmo ao ponto de defender a expropriação da fortuna dos bens dos ricos ociosos, de forma a compeli-los a terem uma vida produtiva. [35]

Como podemos ver, a ideia de universalizar o trabalho e a educação, na sua indissociabilidade, remonta há muito na história. É portanto muito significativo que esta ideia tenha permanecido apenas como uma ideia bastante frustrada, dado que a sua realização pressupõe necessariamente a igualdade substantiva de todos os seres humanos. O facto grave de que o desumanizante tempo de trabalho dos indivíduos seja também a maior parte do seu tempo de vida, teve de ser rigidamente ignorado. As funções controladoras da reprodução metabólica social tiveram de ser separadas e opostas à esmagadora maioria da humanidade, destinada à execução de tarefas subordinadas num determinado sistema político e sócio-económico. No mesmo espírito, não só o controlo do trabalho estruturalmente subordinado como também a dimensão do controle da educação tinha de ser mantido num compartimento separado, sob o domínio das personificações do capital na nossa época. É impossível mudar a relação de dominação estrutural e subordinação sem a percepção da verdade – substantiva e não apenas igualdade formal (que é sempre profundamente afectada, se não completamente anulada pela dimensão substantiva realmente existente). É por isto que apenas dentro da perspectiva de ir para além do capital o desafio de universalizar o trabalho e a educação, na sua indissolubilidade, pode surgir na agenda histórica.

Na concepção de educação há muito dominante os governantes políticos e os governados, assim como os privilegiados educacionalmente (quer se trate dos indivíduos empregados como educadores ou como administradores no controlo das instituições educacionais) e aqueles que têm de ser educados, aparecem em compartimentos separados, quase estanques. Um bom exemplo desta visão é expresso no artigo sobre "Educação" publicado na reputada e culta última edição da Encyclopaedia Britannica. E diz o seguinte:
"A acção do Estado moderno não pode parar um pouco antes da educação elementar. O princípio da "carreira aberta ao talento" não é mais um assunto de teoria humanitária abstracta, uma aspiração fantástica de sonhadores revolucionários; para as grandes comunidades industriais do mundo moderno é uma necessidade prática convincente imposta pela concorrência internacional feroz que prevalece nas artes e nas indústrias da vida. A nação que não queira falhar na luta pelo êxito comercial, com tudo o que isso implica para a vida nacional e para a civilização, deve considerar que as suas indústrias sejam alimentadas com uma oferta constante de trabalhadores adequadamente equipados tanto em termos de inteligência geral como de treino técnico. Também no terreno político, a crescente democratização das instituições torna uma vasta difusão de conhecimentos e o florescimento de um alto padrão de inteligência entre o povo um cuidado evidente do estadista prudente, especialmente para os grandes Estados imperiais, os quais confiam as mais momentosas questões do mundo político ao arbítrio da voz popular ". [36]
Mesmo nos seus próprios termos de referência este artigo académico – sem dúvida impressionante na sua avaliação histórica – é bastante defeituoso, devido a razões ideológicas claramente identificáveis. Pois exagera grandemente os efeitos benéficos da "concorrência internacional feroz" de capitais nacionais sobre a educação do povo trabalhador. O livro profundo de Harry Braverman intitulado "The Degradation of Work in the Twentieth Century" [37] faz uma avaliação incomparavelmente melhor das forças alienantes e brutalizantes em acção na moderna empresa capitalista. Elas lançam uma luz negativa penetrante sobre a deturpação da "luta pelo êxito comercial" acerca da qual o autor deste artigo postula um impacto "civilizador" quando na realidade muitas vezes o resultado necessário é diametralmente oposto. E mesmo relativamente a empresas industriais específicas, a chamada "gestão científica" de Frederic Winslow Taylor revela o segredo de quão elevados devem ser os requisitos educacionais/intelectuais das firmas capitalistas para dirigirem uma operação competitivamente bem sucedida. Como F. W. Taylor, o fundador deste sistema de controlo de gestão, escreve com um indisfarçado cinismo:
"Um dos primeiros requisitos para um homem ser apto a lidar com ferro-gusa como ocupação regular é que ele deve ser tão estúpido e tão fleumático que mais se assemelhe no seu quadro mental a um boi do que a qualquer outro tipo. … O operário que melhor se adequa a lidar com ferro-gusa é incapaz de compreender a verdadeira ciência de realizar esta classe de trabalho. Ele é tão estúpido que a palavra 'percentagem' não tem qualquer significado para ele. " [38]
De facto muito científico! Quanto à proposição segundo a qual "uma ampla difusão de conhecimento e o cultivo de um alto padrão de inteligência" é o objectivo felizmente adoptado pelo moderno estado capitalista – " especialmente para os grandes estados imperiais que confiam os assuntos mais importantes da política mundial à decisão da voz popular " – é ridículo demais e obviamente muito apologético no carácter para ser considerado, sequer por um momento, como argumento sério a favor das causas invocadas de melhoria da educação inspiradas democraticamente e politicamente iluminadas sob as condições de domínio do capital sobre a sociedade.

EDUCAÇÃO para além do capital contempla uma ordem social qualitativamente diferente. Agora não só é possível embarcar na estrada que nos leva até essa ordem como também é necessário e urgente. Pois as incorrigíveis determinações destrutivas da ordem existente tornam imperativo contrapor aos antagonismos estruturais irreconciliáveis do sistema capitalista uma alternativa positiva sustentável para a regulação da reprodução metabólica social se quisermos assegurar as condições elementares da sobrevivência humana. O papel da educação, orientado pela única perspectiva positivamente viável de ir para além do capital, é absolutamente crucial a este propósito.

A sustentabilidade equivale ao controlo consciente pelos produtores associados livremente do processo de reprodução metabólico social, em contraste com a indefensável, estruturalmente estabelecida rivalidade e destrutibilidade última da ordem reprodutiva do capital. É inconcebível ocasionar este controlo consciente dos processos sociais – uma forma de controlo que por acaso também é a única forma possível de auto-controlo: o requisito necessário para serem produtores associados livremente – sem activar totalmente os recursos da educação no sentido mais amplo do termo.

O grave e inultrapassável defeito do sistema capitalista consiste na alienação de mediações de segunda ordem que têm de ser impostas a todos os serem humanos, incluindo as personificações do capital. De facto, o sistema capitalista não conseguiria sobreviver durante uma semana sem as suas mediações de segunda ordem: principalmente o Estado, a relação de troca orientada para o mercado, e o trabalho na sua subordinação estrutural ao capital. Elas são necessariamente interpostos entre indivíduos e indivíduos, assim como entre indivíduos particulares e as suas aspirações, virando os últimos de "cabeça para baixo" e "às avessas", de forma a conseguir subordiná-los a imperativos fetichistas do sistema capitalista. Por outras palavras, estas mediações de segunda ordem impõem uma forma alienada de mediação à humanidade. A alternativa positiva a esta forma de controlar a reprodução metabólica social apenas pode ser a auto-mediação, na sua inseparabilidade do auto-controlo e da auto-realização através da liberdade e igualdade substantiva, numa ordem social reprodutiva conscientemente regulada pelos indivíduos associados. É também inseparável dos valores escolhidos pelos próprios indivíduos, de acordo com as suas necessidades genuínas, em vez de lhes serem impostos – sob a forma de apetites perfeitamente artificiais pelos imperativos reificados da acumulação lucrativa do capital, como é o caso hoje. Nenhum destes objectivos emancipadores é concebível sem a intervenção mais activa da educação entendida na sua orientação positiva no sentido de uma ordem social para além do capital.

Vivemos numa ordem social na qual mesmo os requisitos mínimos da realização humana são insensivelmente negados à esmagadora maioria da humanidade, enquanto a produção de desperdício assumiu proporções proibitivas, de acordo com a mudança da reclamada " destruição produtiva " do capitalismo no passado para a realidade mais dominante hoje da produção destrutiva. As desigualdades sociais gritantes em evidência actualmente, e ainda mais pronunciadas no seu desvelado desenvolvimento, são bem ilustradas pelos seguintes números:
"Segundo as Nações Unidas, no seu Relatório sobre o Desenvolvimento Humano, o 1% mais rico do mundo recebe tanto de rendimento quanto os 57% mais pobres. O intervalo de rendimentos entre os 20% mais ricos e os 20% mais pobres no mundo aumentou dos 30 para 1 em 1960, para 60 para 1 em 1990 e para 74 para 1 em 1999, e estima-se que atinja os 100 para 1 em 2015. Em 1999-2000, 2,8 biliões de pessoas viviam com menos de 2 dólares por dia, 840 milhões estavam subnutridos, 2,4 biliões não tinham acesso a qualquer forma melhorada de serviços de saneamento, e uma em cada seis crianças no mundo em idade de frequentar a escola primária não estavam na escola. Estima-se que cerca de 50% da força de trabalho não agrícola ou está desempregada ou sub-empregada. [39]
O que está aqui em jogo não é simplesmente o défice de contingente dos recursos económicos disponíveis, a serem ultrapassados mais cedo ou mais tarde, como prometido graciosamente, mas o défice estrutural necessário de um sistema que opera através dos seus círculos viciosos de desperdício e de escassez. É impossível sair deste círculo vicioso sem a intervenção positiva da educação, capaz simultaneamente de estabelecer prioridades e de definir as genuínas necessidades com as totais e livres deliberações dos indivíduos em causa. De outro modo, a escassez pode ser e será reproduzida numa escala sempre crescente, em conjunção com a geração de necessidades artificiais absolutamente devastadora, como tem sido feito actualmente, ao serviço loucamente orientada auto-expansão do capital e da acumulação contra-producente.

Uma concepção rival positivamente articulada de educação para além do capital não pode ser confinada a um número limitado de anos na vida dos indivíduos mas, devido às suas funções radicalmente mudadas, abarca-os a todos. A "auto-educação de iguais" e a "auto-gestão da ordem social reprodutiva" não podem ser separadas uma da outra. A auto-gestão – pelos produtores livremente associados – das funções vitais do processo metabólico social é um empreendimento progressivo – e inevitavelmente em mudança. O mesmo vale para as práticas educacionais que habilitam o indivíduo a realizar essas funções como constantemente redefinidas por eles próprios, de acordo com os requisitos em mudança dos quais eles são agentes activos. A educação, neste sentido, é verdadeiramente " educação contínua ". Nem pode ser "vocacional" (o que significa nas nossas sociedades o confinamento das pessoas envolvidas a funções utilitaristas estreitamente pré-determinadas, privadas de qualquer poder decisório), nem "geral" (que deve ensinar aos indivíduos, de forma paternalista, as "artes do pensamento"). Estas noções são as presunções arrogantes de uma concepção baseada numa totalmente insustentável separação das dimensões prática e estratégica. Portanto a "educação contínua", como um constituinte necessário dos princípios reguladores de uma sociedade para além do capital, é inseparável da prática significativa da auto-gestão. É uma parte integral desta última quer como representação no início da fase de formação na vida dos indivíduos, e, por outro lado, no sentido de permitir um feedback positivo dos indivíduos educacionalmente enriquecidos, com as suas necessidades mudando apropriadamente e redefinidas equitativamente, para a determinação global dos princípios orientadores e objectivos da sociedade.

A nossa graduação histórica é definida pela crise estrutural do sistema capitalista global. Está na moda falar, com total auto-complacência, sobre o grande êxito da globalização capitalista. Um livro recentemente publicado e propagandeado devotamente tem o título: Why Globalization Works. [40] Contudo o autor, que é o Chief Economics Commentator do Finantial Times de Londres, esquece-se de fazer a pergunta realmente importante: Para quem é que funciona?, se é que funciona. Certamente funciona, por enquanto, e de modo algum assim tão bem, para os decisores do capital transnacional, mas não para a esmagadora maioria da humanidade que tem de sofrer as consequências. E nenhuma quantidade de "integração jurisdicional" advogada pelo autor – isto é, em inglês simples, o controle directo mais apertado dos deplorados "demasiados estados" por uma mão cheia de poderes imperialistas, especialmente o maior deles – vai conseguir remediar a situação. Na realidade a globalização capitalista não funciona nem pode funcionar. Pois não pode ultrapassar as contradições irreconciliáveis e os antagonismos manifestos através da crise estrutural global do sistema. A própria globalização capitalista é a manifestação contraditória dessa crise, tentando vencer a relação causa/efeito numa tentativa vã de curar alguns efeitos negativos através de outros efeitos desejadamente projectados, porque é estruturalmente incapaz de se dirigir às suas causas.

A nossa época de crise estrutural global do capital é também a época histórica de transição da ordem social existente para uma qualitativamente diferente. Estas são as duas características fundamentais definidoras do espaço histórico e social no seio do qual os grandes desafios para quebrar a lógica do capital, e ao mesmo tempo também a elaboração de planos estratégicos para a educação para além do capital, devem ser conhecidos. Portanto a nossa tarefa educacional é simultaneamente a tarefa de uma transformação social ampla emancipadora. Nenhuma das duas pode ser posta à frente da outra. Elas são inseparáveis. A transformação social emancipadora radical requerida é inconcebível sem a contribuição positiva mais activa da educação no seu sentido amplo, como foi descrito nesta palestra. E vice-versa: a educação não pode funcionar suspensa no ar. Ela pode e deve ser articulada adequadamente e redefinida constantemente no seu interrelacionamento dialéctico com as condições em mudança e as necessidades da transformação social emancipadora progressiva. As duas têm êxito ou falham, sustêm-se ou caem juntas. Cabe-nos a todos – todos, porque sabemos bem demais que "os educadores também têm que ser educados" – a sua manutenção e não a sua queda. Os riscos são demasiadamente elevados para se contemplar a hipótese de fracasso.

Neste empreendimento as tarefas imediatas e os seus enquadramentos estratégicos globais não podem ser separados, e opostos, uns aos outros. O êxito estratégico é impensável sem a realização das tarefas imediatas. De facto, o próprio enquadramento estratégico é a síntese global de inúmeras, sempre renovadas e expandidas, tarefas imediatas e desafios. Mas a solução dos últimos é possível apenas se a abordagem ao imediato for informada pela sintetização do enquadramento estratégico. Os passos mediadores em direcção ao futuro – no sentido da única forma viável de auto-mediação – apenas podem iniciar-se do imediato, mas iluminados pelo espaço que pode legitimamente ocupar na estratégia global orientada pelo futuro contemplado.
NOTAS:
[1] Paracelso, Selected Writings, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1951, p. 181;
[2] José Martí, "Libros", in Obras Completas, vol. 18, Editorial de Ciencias Sociales, La Habana, 1991, pp. 290-91;
[3] Marx, Theses on Feuerbach, in Marx/Engels Collected Works, vol. 5, p. 7;
[4] Para uma discussão detalhada sobre a estratégia reformista de Bernstein ver o Capítulo intitulado "O aliado cego e representativo de Bernstein" no meu livro: The Power of Ideology, Harvester/Whetsheaf, Londres, 1989; no Brasil: O Poder da Ideologia, Edição ampliada, Boitempo Editorial, São Paulo, 2004;
[5] Adam Smith, Lectures on Justice, Police, Revenue, and Arms (1763). In A. Smith's Moral and Political Philosophy, ed. por Herbert W. Schneider, Haffner Publishing Co., Nova Iorque, pp. 318-21;
[6] Ibid., pp. 319-20;
[7] Robert Owen, A New View of Society and Other Writings, Edição Everyman, p. 124;
[8] Ibid., pp. 88-89;
[9] Ibid., p. 124;
[10] Ver nota 3;
[11] Fidel Castro, José Martí: El autor intelectual, Editora política, Havana, 1983, p. 162. Ver também p. 150 do mesmo volume;
[12] Marx, O Capital, Vol. 1, pp. 713-14 e 734-36;
[13] Locke, "Memorandum on the Reform of the Poor Law", em R. H. Fox Bourne, A Vida de John Locke, King, Londres, 1876, Vol. 2, p. 378;
[14] Ibid., p. 383;
[15] Neal Word, The Politics of Locke's Philosophy, University of California Press, Berkeley, 1983, p. 26;
[16] Locke, "Memorandum on the Reform of the Poor Law", Obra citada, p. 380;
[17] Ibid.;
[18] Ibid., p. 383;
[19] Ibid., pp. 384-85;
[20] "Público" neste contexto significa privado na Grã-Bretanha, referindo-se às escolas pagas com propinas exorbitantes;
[21] Antonio Gramsci, "The formation of intellectuals", em The Modern Prince and Other Writings, Lawrence e Wishart, Londres, 1957, p. 121;
[22] A dificuldade é que o 'momento' de políticas radicais é rigidamente limitado pela natureza da crise em questão e pelas determinações temporais das duas revelações. A brecha aberta em tempos de crise não pode ficar aberta para sempre e as medidas adoptadas para a preencher, desde os primeiros passos em diante, têm a sua lógica própria e impacto cumulativo nas intervenções subsequentes. Além disso, tanto as estruturas socio-económicas existentes como os seus correspondentes enquadramentos nas instituições políticas tendem a agir contra iniciativas radicais através da sua inércia assim que o pior momento de crise está terminado e se torna, portanto, possível contemplar uma vez mais "a linha de menor resistência". … Paradoxal como possa parecer, apenas uma auto-determinação radical de políticos pode prolongar o momento de politicas radicais. Se esse 'momento' não se dissipar sob o peso das pressões económicas imediatas, deve encontrar-se uma maneira de se prolongar a sua influência muito para além do próprio pico de crise (o pico, isto é, quando as políticas radicais tendem a afirmar a sua efectividade como regra). E uma vez que a duração temporal da crise como tal não pode ser prolongada consoante a vontade – nem deveria sê-lo, posto que as políticas voluntaristas, com os seus "estados de emergência" manipulados artificialmente, podem apenas tentá-lo por seu risco próprio, alienando assim as massas de pessoas em vez de assegurar o seu sustento – a solução apenas pode surgir da viragem bem sucedida do 'tempo fugaz' para o espaço duradouro através da reestruturação de poderes e instituições de decisão". I. Mészáros, Beyond Capital, pp. 950-51.
[23] Attila József, Al borde de la ciudad (A város peremén), traduzido por Fayad Jamás.
[24] Renato Constantino, Neo-Colonial Identity and Counter-Counsciousness: Essays on Cultural Decolonization, The Merlin Press, Londres, 1978, 307 páginas. Nos Estados Unidos publicado por M. E. Sharpe Inc., White Plains, Nova Iorque, 1978.
[25] Ibid., pp. 20-21.
[26] Ibid., pág. 23.
[27] Citado em Jorge Lezcano Pérez, I ntroduction to José Martí: 150 Aniversario, Casa Editora da Embaixada de Cuba no Brasil, Brasília, 2003, pág. 8.
[28] Pretendido por Martí como um projecto progressivo, não foi sua culpa que apenas quatro números pudessem ser publicados, por falta de apoio financeiro. Os quatro números estão agora reproduzidos no Volume 18 das Obras Completas de José Martí, pp. 299-503. Não se pode hoje ler a preocupação expressa nessas páginas sem se ficar profundamente comovido.
[29] Marx, The Poverty of Philosophy, Lawrence e Wishart, Londres (sem data), p. 123;
[30] "Estamos condenados ao vale das lágrimas" numa versão, e "estamos condenados à angústia da liberdade" noutra.
[31] A polémica de Bernstein contra Marx é absolutamente caricatural. Em vez de se envolver com ele numa discussão teórica apropriada, prefere seguir o caminho de atirar contra ele um insulto gratuito condenando, sem qualquer fundamento, a "armação dialéctica" de Marx – e de Hegel. Como se a transformação dos pesados problemas do raciocínio dialéctico num insulto desqualificante pudesse por ele próprio resolver os importantes assuntos políticos e sociais em disputa. O leitor interessado pode encontrar uma discussão razoavelmente detalhada desta controvérsia no Capítulo 8 de The Power of Ideology mencionado acima na Nota nº. 5. O termo "grandes narratives" na pós-modernidade é usado analogamente ao insulto desqualificador de Bernstein contra a condenada "armação dialéctica".
[32] Fidel Castro, José Martí: El autor intelectual, Editora Política, Havana, 1983, p. 224.
[33] Até o governo hostil dos Estados Unidos teve que reconhecer de forma desequilibrada este feito: através da concessão a uma empresa farmacêutica americana na Califórnia do direito de concluir um acordo comercial multi-milionário com Cuba, em Julho de 2004, para a distribuição de uma droga anti-cancerígena salvadora de vidas, suspendendo assim a este respeito uma das suas regras de bloqueio selvagem. Obviamente, mesmo assim o governo dos Estados Unidos manteve a sua hostilidade ao negar o direito de transferir os fundos envolvidos em "divisas duras", obrigando em vez disso a sua própria empresa a negociar algum tipo de acordo de "troca" ("barter"), fornecendo produtos agrícolas ou industriais americanos em troca da pioneira medicina cubana.
[34] Paracelso, Selected Writings, Routledge & Kegan Paul, Londres, 1951, pp. 176-77, 189, 183.
[35] Ver Paracelso, Leben und Lebensweisheit in Selbstzeugnissen, Reclam Verlag, Leipzig, 1956, p. 134;
[36] Ver o artigo sobre "Educação" na 13ª Edição (1926) da Encyclopaedia Britannica.
[37] Ver Harry Braverman, Labour and Monopoly Capital: The Degradationm of Work in the Twentieth Century, Montlhy Review Press, Nova Iorque, 1974. Um documentário televisivo sobre a linha de montagem de automóveis em Detroit onde um grupo de trabalhadores entrevistava outro grupo, perguntando quanto tempo eles demoravam a aprender os seus conhecimentos. Eles olhavam uns para os outros e começavam a rir, respondendo com um desprezo indisfarçado: "oito minutos; é só!". Ed. brasileira: "Trabalho e capital monopolista: A degradação do trabalho no século XX", Zahar Editores, Rio de Janeiro, 1977, 379 pgs.
[38] F. W. Taylor, Scientific Management, Harper e Row, Nova Iorque, 1947, p.29.
Ver Capítulos 2 e 3 de The Power of Ideology, especialmente as Secções 2.1: "Postwar Expansion and 'Post-Ideology'", e 3.1: "Managerial Ideology and the State".
[39] Minqi Li, "After Neoliberalism: Empire, Social Democracy, or Socialism?", Monthly Review, Janeiro de 2004, p. 21.
[40] Ver Martin Wolf, Why Globalization Works, Yale University Press, 2004.

Intervenção na abertura no Fórum Mundial de Educação, Porto Alegre, Brasil, 28/Jul/2004. Tradução de T. Brito.


Este ensaio encontra-se em http://resistir.info/

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